Ilha dos Cachorros | A humanização dos caninos representa a nossa desumanização

Wes Anderson, o tão conhecido diretor que possui certa obsessão por enquadramentos centrados e perfeito alinhamento dos elementos em cena, não poderia deixar sua marca em seu novo filme, Ilha dos cachorros. Contando com um visual espetacular, de cores vibrantes que ressaltam os cenários, o filme todo feito em stop motion demonstra uma qualidade não só em seu design, mas também, e principalmente, em seu roteiro recheado de metáforas e paralelos com a realidade.

Sinopse:

Atari Kobayshi é um garoto japonês de 12 anos de idade. Ele mora na cidade de Megasaki, sob a tutela do prefeito corrupto Kobayashi. O político aprova uma nova lei que proíbe os cachorros de morarem no local, fazendo com que todos os animais sejam enviados a uma ilha vizinha repleta de lixo. Mas, o pequeno Atari não aceita se separar do cachorro Spots, ele convoca os amigos, rouba um jato em miniatura e parte em busca do seu fiel amigo. A aventura épica vai transformar completamente a vida da cidade.

O roteiro tem a assinatura do diretor juntamente com Roman Coppola e mescla muito bem o humor excêntrico e o drama. A brincadeira entre fábula – animais que apresentam características antropomórficas, utilizando analogias entre o cotidiano humano e as histórias vividas pelas personagens para no final presentear com uma moral – e a realidade, uma vez que pincela diversos assuntos da sociedade, do comportamento humano e da organização dos governos.

O abandono, a ingratidão, o ódio são sentimentos presentes na obra, em contraste há o amor, a lealdade e principalmente a amizade. Estes sentimentos são pontuados e muitas vezes somos conduzidos a refletir a respeito deles, pois se repete a mesma história durante anos e anos na nossa sociedade. Quando o desejo de se sentir superior faz com que nós subjugamos o diferente, o outro, que é desconhecido para nós. Seus problemas viram meros detalhes, problemas do outro. Seja esse outro qualquer espécie viva.

O pior é a falácia de que os fins justificam os meios e que as atrocidades tomadas são para o bem estar comum. É tudo simplesmente fachada para exercer a crueldade a torto e a direito. Desumanizamos, tornamos bestializados, nos distanciamos do que significa ser animal simplesmente para reforçar uma superioridade sobre o outro, para defender algo que nos convém. A espécie humana está cheia de sujeira, é só recorrermos à história, tivemos guerras, holocaustos, racismo, misoginia, perseguição a imigrantes, segregação, ditaduras e a lista não para. Mas, o maior detalhe é que não ficou para trás, não é história passada, é história presente. Está todo dia acontecendo. Essa analogia poderosa é feita ao longo do filme em que abandonar os cachorros em uma ilha de lixo e a desenvolver perseguição é a nossa própria realidade imprimida em cena.

Não para por aí, a humanização dos cachorros serve também para nos aproximar dessas espécies que fazem parte do nosso mesmo reino, o animal. Somos todos animais. Precisamos internalizar isso para que a crueldade animal também diminua e que principalmente, pare de acontecer.

Toda essa aproximação com a realidade se apresenta através de detalhes, que inclusive tiveram o cuidado de inserir em Ilha dos Cachorros, a ambientação traz a arquitetura japonesa, incorporada de elementos culturais; na ilha, sempre há um rato correndo ao fundo, as pulgas ou carrapatos saltando nos caninos, tudo isso para demonstrar uma situação precária em que vivem os bichos, além é claro das lutas por sobrevivência – que nos leva a refletir o quanto um ambiente hostil desenvolve comportamentos de violência. Os sons se aproximam bastante da audição canina e a câmera muitas vezes toma a ótica deles, nos colocando em suas posições, compreendendo o jeito que vivem, pois muitas vezes quando a câmera centraliza eles e os mesmos estão virados em nossa direção é como se falassem diretamente conosco, em outras vezes o enquadramento sugere que estamos naquele meio, com aquele grupo.

Outro elemento utilizado com a sutileza dos detalhes para nos aproximar dos cachorros é a escolha do diretor em fazer com que todas personagens humanas falassem japonês, enquanto os cachorros falassem em inglês, sendo necessário, muitas vezes intérpretes para a tradução. Isso nos permite nos conectar ainda mais com aqueles animais, uma vez que gera impessoalidade, uma sensação de compreensão. A profundidade psicológica dos caninos é bem explorada, os detalhes dos olhos lacrimejantes quando se emocionam nos eleva a empatizar e compreender a dor deles.

Por último, Ilha dos Cachorros aborda o totalitarismo e a corrupção, muito mais do que apontar apenas um vilão, a animação nos mostra um sistema, que de fato a corrupção é, onde as figuras de poder podem ser peões dentro de um contexto maior. Ou podem ser o orquestrador também, mas nunca estão sozinhos. Então, não adianta nada prender um sujeito e esperar que a corrupção acabe, desculpe informar, o mesmo foi apenas um bode expiatório. Para acabar com a corrupção, é preciso acabar com o sistema.

Enfim, Ilha dos Cachorros é Wes Anderson em sua totalidade, com assinatura e carimbo. A animação aborda diversas temáticas e como uma fábula, dá mais de uma lição de moral, mas a mais importante, no entanto, é a de que é possível se relacionar e se identificar com o diferente, o outro, pois sempre há semelhanças. O longa possui história única e bem executada, fazendo uso de muitos recursos, sendo um deles a saturação das cores evidenciando a péssima mas aparente positiva situação dos caninos e daquela sociedade.

Notas da Pinguim: A Greta Gerwig (Lady Bird) dublou Tracey Walker // O Wes Anderson homenageou bastante o cinema japonês e inclusive admitiu se inspirar em Hayao Miyazaki – com espaco para silencio e desconfortos – e Akira Kurosawa.

Tagarelem conosco: vocês gostam de stop motion? Já assistiram os filmes do Wes? Gostam de animações com reflexões profundas?

Longa estreia dia 26 de Julho nos cinemas brasileiros.

Até a próxima tagarelice e lembrem-se Ilha dos Cachorros é um filme bom pra cachorro (perdoem o trocadilho)

One Reply to “Ilha dos Cachorros | A humanização dos caninos representa a nossa desumanização”

  1. Eu amo stop motion por causa dos filmes do Tim Burton e Coraline *-* não conhecia esse diretor e, não sei se é porque o filme é em stop motion, mas é impossível não pensar nos trabalhos do Burton.
    Fiquei muito curiosa para assistir, pois trata de temas muito importantes. Sua crítica está fantástica! 🙂

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